Estamos chegando ao final do Maio Amarelo e da nossa série “O que a Fórmula 1 pode te ensinar sobre o Trauma?”. Aprendemos muitas dicas com o modo rápido e preciso que os mecânicos atuam durante os pit stops e hoje vamos encerrar nossa jornada, comentando as letras D (Disability) e E (Exposure), e, mais que isso, hoje vamos revelar a maior lição da Fórmula 1.
Como de praxe, vamos assistir ao vídeo do pit stop da Ferrari e tentar pensar um pouco em qual personagem está realizando a letra D?
E aí? Arrisca um chute?
Se pararmos para pensar, a resposta é um pouco óbvia, mas sutil. Você reparou nos mecânicos que dão uma estabilizada e seguram o carro logo no início e depois saem? Não? Dá só uma olhada.
Esses sujeitos estão fazendo a letra D.
“Mas como?”
Então, saca só. A letra D é responsável pela avaliação neurológica do paciente. Para podermos identificar se há alguma lesão importante e, mais importante que isso, PREVENIR uma lesão secundária. [1,2]
Embora o traumatismo cranioencefálico seja a maior causa de morte nos traumas, sua avaliação inicial é muito simples. Durante a letra D, você só deve fazer 3 coisas: Escala de Coma de Glasgow, avaliação pupilar e avaliação motora focal, procurando déficits focais. [2]
Meu amigo Miguel já destrinchou grande parte dessa avaliação, falou do Glasgow, dos diferentes tipos de pupilas, da necessidade de mantermos a pressão de perfusão cerebral (PPC) e muito mais. Um elemento importante é avaliar a motricidade do nosso paciente. Um exame rápido de força e mobilidade deve ser feito, pedindo para o paciente apertar as suas mãos com bastante força, mexer os dedos dos pés e levantar as pernas. Caso haja fraqueza, suspeitamos de uma lesão medular. [1,2]
Se o paciente estiver desacordado, pelo Glasgow identificarmos o grau de resposta motora com estímulos dolorosos. Se percebermos uma diferença clara entre os lados, isso pode significar um sangramento intracraniano em evolução. [2]
“Schubert, me falaram que paciente com Glasgow de 8 ou menos é indicativo de intubação. É verdade? Por quê?”
Exatamente. Um Glasgow ≤ 8 indica que o paciente tem um TCE grave. Daí é imperativo proteger a via aérea (como vimos na letra A) e oxigenar o paciente. Como o Miguel demonstrou, a PPC é influenciada por vários fatores, incluindo a PaCO2 (pressão parcial de gás carbônico no sangue arterial). Um aumento na PaCO2 causa vasodilatação cerebral e aumento da pressão intracraniana. Eu preciso, então, garantir a via aérea do paciente – que está sob risco de broncoaspiração – e diminuir a PaCO2, com ventilação adequada. O manual do ATACC – Anaesthesia Trauma and Critical Care – recomenda assumir que a pressão intracraniana de traumas graves esteja em 30 mmHg. Logo, teríamos que manter a pressão arterial média (PAM) em, no mínimo, 100 mmHg. [2]
“Tranquilo! Já entendi. E a letra E, Schubert? Tem que despir o paciente todo?”
Exatamente. Claro que sempre usando o bom senso. Você precisa olhar para todo o paciente, expor escoriações e ferimentos, para, até mesmo, pensar em lesões escondidas e no mecanismo do trauma. Assim, principalmente em pacientes graves, precisamos tirar toda a roupa, mas sempre preservando a dignidade dele e evitando a hipotermia.
“Todo mundo fala dessa hipotermia, mas aqui no Brasil nem precisa ter tanto cuidado, né? Afinal, é um calor desgraçado!”
Claro que não. Em geral, a maioria dos hospitais possui um ar-condicionado funcionante e, muitas vezes, muito potente. O que é confortável para você no seu jaleco quentinho e para a equipe, com certeza não é para um paciente que está sangrando, molhado, e despido. A hipotermia é importante influenciador na coagulação, é um dos fatores da coagulopatia do trauma e está presente na famosa Tríade da Morte. [2]
Nesse momento é importante também buscar lesões musculoesqueléticas importantes, principalmente de ossos longos, nos membros superiores e inferiores. Essa é a hora da fratura! Lembrando que, como já conversamos na letra C e o Bruno Siqueira dissecou, a busca pela fratura de pelve é feita antes de todas as outras!
Falamos de todas as letras e estamos chegando ao final da nossa jornada. Porém, o mais importante disso tudo é uma lição escondida que a Fórmula 1 nos ensina: a importância do trabalho em equipe.
Podemos ver claramente como uma equipe coesa consegue trabalhar rapidamente e com precisão. Devemos buscar isso. Estudos já demonstraram que o trabalho em equipe consegue sim diminuir erros, acelerar o atendimento – famosa Golden Hour do trauma – e salvar mais vidas. Médicos, enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas. Todos integrados e com o mesmo objetivo. [2, 3]
Já existem até cursos específicos para isso do American College of Surgeons: o curso TEAM – Trauma Evaluation and Management – é inovador nesse aspecto. [3] O treinamento multiprofissional desde a graduação parece que é fundamental [4, 5]. E a importância disso é tão grande que o novo ATLS incluirá um capítulo só sobre trabalho em equipe…
E o melhor de tudo: para trabalhar em equipe não precisamos de equipamentos de última geração, um hospital de ponta e tecnologias de primeiro mundo. Precisamos de pessoas dispostas a fazer a diferença.
O paciente vítima de trauma não escolhe o hospital que vai ou o médico que vai atendê-lo. Nós que escolhemos trabalhar nesses hospitais. O trauma não discrimina classe social, acesso a plano de saúde ou não. É para o SUS que todos vamos quando há um acidente.
Precisamos entender é que é possível sim, mesmo em um ambiente de caos como o da saúde pública brasileira, fazer valer a pena e fazer valer a vida. Conhecimento e trabalho em equipe. Essas são nossas principais armas de luta!
Com essa mensagem me despeço da nossa série!
Espero que você tenha gostado e aprendido junto comigo as lições que a Fórmula 1 pode nos ensinar!
Até a próxima!